segunda-feira, fevereiro 28

Ouros Negros



Era um domingo qualquer quando...
Aliás, não era um domingo qualquer. Dominava aquele aborrecido pessimismo ainda que estivesse tudo belo e que a família estivesse relativamente reunida.
Então, era um domingo qualquer no sentido de que domingo é sempre domingo, mas, além do pessimismo ultimamente reinante seria inédito o ocorrido que se segue.

Estava sozinha na sala, lendo. Ainda que meio desconfortável na poltrona, acostumada com a escrivaninha, a cadeira e tudo milimetricamente calculado, a leitura fluia como se aquelas palavras soassem naturais e não tivessem sido fruto de uma grande pesquisa de um grande pesquisador. Ia-se lá pelas tantas a explusão dos Holandeses e a fixação nas Antilhas – que trariam problemas para a produção brasileira posteriormente. Subsequente a isso vinha a parte em que o autor afirma que o trabalho escravo e o tráfico negreiro é mais rentável à grandes propriedades de terra.
Foi quando ela entrou na sala. Com aquele sorriso inocente por fora, mas, indecifrável pela gente branca por dentro que ela veio caminhando até se sentar na poltrona ao lado. Liberdade dada pelos patrões de que não haveria privações dessa natureza. Bem, eu, curiosa, pedi a ela que lesse, qualquer parte que quisesse da página. No fundo eu queria testar seu grau de leitura mas percebi que ela fluia bem apesar de não entender nada que lia. Perguntei o que ela havia lido de forma embaraçada e com atropelo de palavras. Ela deu uma gargalhada estridente e disse que não sabia, sem o menor peso na consciência ou sentimento de inferioridade, então, como eu imaginava, ela era uma analfabeta funcional.
Eu então numa atitude automática puxei o livro de suas mãos e disse: “Te explico”. Contextualizando a situação de colonização do Brasil eu foquei nas atividades produtivas, não falei de escravidão. Ela não tinha culpa de nada. Talvez eu tivesse. Ou não. O fato é que eu simplesmente recuei nos aspectos morais, detalhava descritivamente o que não omitia. Daí, ela achou muito interessante toda aquela história de associação de Portugal com a Inglaterra e a retomada de reais interesses ao Brasil já que consolidado o grito de independência. Ela gostou de saber que a história de quando saiu de casa se assemelhava um pouco à história do Brasil naquele momento e insistiu, por fim, que eu fosse a Inglaterra e não Portugal. Eu deixei. Simples e um pouco imperfeitas as associações ela pareceu entender e ficamos, as duas, satisfeitas.
Após isso, ela me disse que precisaria sair para “ver se lá fora” precisavam dela. Um tempo depois, terminando o capítulo, eu me levantei e vi que ela assistia televisão, em dia de domingo. Imagine.
Não perderia a oportunidade de perguntar: “E aí, você gosta mais da história que eu te contei ou de assistir televisão.” Imediata e logicamente eu fiquei apreensiva pela resposta. Se ela escolhesse a televisão... Então ela olhou pra mim, riu, fez cara de sabida e disse antes das imensas gargalhadas: “Mais da história, claro, aquele livro, eu achei muito importante!”
Formei uma seguidora latente de Celso Furtado.
Fim.

terça-feira, fevereiro 22

Parecia um ensaio


Eu nunca quisera estar na pele de ninguém como quis ao ver aquela menina com cerca de 11 anos passear na praça com um grupo de amigos da mesma idade. Aquela felicidade, aquele sorriso despreocupado, os cabelos castanhos, pesados e extremamente lisos ao vento de um lado para outro como quem anda sem se preocupar com os passos a qual dar: exatamente como eu era anos atrás, nessa mesma idade. E como hoje não estou. Sorrisos e passos a dar. Foi quando vendo aquela imagem que eu percebi que afinal algo convinha estranhamente. O motivo era entender o porquê de reivindicar o passado e renunciar o presente tão lutado para ser como ele exatamente é. Não há características a mudar, afinal. Foi então que eu entendi que eu não sabia verdadeiramente o que o medo era. Não tinha a menor noção ou idéia. E daí eu percebi que estava, momentaneamente, com medo. Um sentimento que de tão bobo parecia até doentio. Mas passou. Assim como a infância, que não sei mais o que é.
E chorando, como marcas infantis, alguém bastante especial e de timbre sábio me pergunta: "Afinal, qual é o tamanho do mundo que você quer?"
A resposta, eu não precisaria dar.

quarta-feira, fevereiro 16

Intellego

O silêncio da biblioteca contrasta ao silêncio eloqüente da mente. Silêncio despertante de toda atividade ociosa, silêncio estridente, paira-se o corpo a um digno pensar. Um tremendo paradoxo. A cada linha que passam os olhos, vê-se o esvaecer da biblioteca, das pessoas, dos livros. Resta-me somente a mim. Não há tempo, não há movimento, não há mundo exterior, não há o que eles chamam de um universo infinito. O interminável gravita somente neste espaço, entre a tinta e o papel. As mãos levadas à testa, como se fosse possível lhe carregar as idéias, representam um estado interior, de intenso desbravamento. E assim é com os outros. Mas, de repente alguém resiste em continuar. Ao adágio, uma intensa marcha lúgubre. O mundo se volta, e eu, levanto-me da cadeira.

quarta-feira, fevereiro 2

Consequência e Verdade

O que trazia verdadeiramente o coração, naquele momento, era desconhecido. O doer. Foi ainda infantil quando o acordo de cavalheiros foi traçado, numa brincadeira de roda. As conseqüências vinham seguidas das não verdades, desconhecidas. Mais doloroso do que não dizer a verdade é desconhecê-la integralmente. E quando o acordo foi traçado pouco era conhecido. Mas mesmo assim assinado.

Fig: Drew Barrymore em "Para sempre Cinderela (Ever After)", John Faed "Shakespeare e seus Contemporâneos"