sábado, julho 10

Do café a música viva


Um café vida em meio a uma cidade morta. Cidade que morta vivia inconsciente a uma causa que lhes foi imposta, digo, a todos que ali permaneciam. Como pessoas que mortas vivem em corpos também formados por outros e correm para ficar parados à frente de telas diversas, de pequenos e grandes tamanhos, de belezas e artes indefinidas. E aquele café, naquela cidade morta, vivia. Como se todos que ali restassem, e festassem, e procurassem algo tão diferente, finalmente vivessem um sopro inspirado em meio aos cadáveres.
E o pandemônio ensurdecedor que era aquela cidade – onde sua grandeza restava apenas para o que se prestava - se silenciava a quem entrasse por aquela porta verde radiante, numa parede turquesa brilhante, com janelas da mesma cor da porta e, mesas e, cadeiras da mesma cor da parede, de forma que, quem ali sentasse de longe pareciam flutuar num ponto vivo da cidade morta.
Mas lá dentro, o que se escutava era Bach, Cello Suite nº 1 Prélude, sempre. Em notas de vida na sinfonia daquela cidade morta. E o repertório era o mesmo, não eram as pessoas mesmas, os livros mesmos, as conversas mesmas, as perguntas mesmas, as filosofias mesmas, os filmes mesmos, que passavam nas camufladas por pinturas, pequenas salas escuras. Mudava tudo. Ou talvez nada. Os timbres mudavam, mas ainda eram sopranos e tenores. Migalhas de gente, de nada, de quem não nada na solidão de muitos amigos. De quem não só encontra a outra metade perdida do tempo em que se conheceu. De quem não só vive os paradoxos da vida, dos graves aos agudos, mas os sente multiplicados de formas diversas, e ri de quem os teme. Mas no fim a cidade também vivia. Ainda que na temperança morta do temor daquela cidade viva ou dos subterrâneos selvagens civilizados pelo que se tornou reinante. Mas a rainha estava morta. O rei estava morto. E, acabaram-se as perguntas. Soterraram as respostas. O que ainda não se aviltava naquele ponto de luz que vive finado na cidade morta.
Fg.: Van Gogh. Café à Noite (1888). Yale University Art Gallery, New Haven

3 comentários:

  1. Muito linda a prosa: poética e filosófica. Que bom seria se os cafés e as pessoas fossem realmente assim; que o que está concreto na folha de um papel (ou no caso em questão, letras abstratas em bits) fosse muito mais do que nossos devaneios platônicos... Mas aí não existiriam as prosas poéticas e filosóficas... Nem Bach, tão incomensurável e além do alcance do nosso tato... :)

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  2. Nossa que prazer ter você aqui novamente, Pedro!

    A poética prosa, prosa poética, inspirados singelamente à Bach, incomensurável, para além do tato, mas ao pé do ouvido.

    Messenger em contato à direita. Pode add.
    Abraços

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  3. Oi Rúbia! O prazer é todo meu! :)

    Adicionei lá, você recebeu o convite?

    Um dia desses estava conferindo os artigos da "Conjuntura Internacional" e fui levado a um texto, por um título provocativo... E de quem era o texto? Hehehe. :)

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